terça-feira, 15 de julho de 2025

O burro

 Vivo numa zona (meio) rural. Casas baixinhas, campo à volta, pessoas com hortas, descampados com oficinas de carros. Durante uns anos ouvia sempre um galo. De manhã lá cantava ele, felizmente não às 5 ou 6h da manhã.

Depois nunca mais ouvi o cantar do galo. Houve silêncio uns tempos. Agora oiço o zurrar de um burro. 

Ao início pensei que estava maluca. Um burro? Aqui perto? Mas de quem? Quem é que aqui precisa de um burro? Ouvia-o mais de manhã. 

Agora oiço de manhã, à tarde e à noite. Não tem horários o animal.

Faz-me sorrir.

É muito curioso. Um burro. (para que servirá ele?)



p.s. Faz-me lembrar um livro que li quando era teenager e que me fez verter lágrimas infinitas. O livro é lindo e comovente. Chama-se Memórias de Um Burro e era da Condessa de Ségur de quem li vários livros na altura. Recomendo muito a toda e qualquer alma sensível:
 https://www.travessa.pt/Artigo/Detalhe/memorias-de-um-burro/artigo/7DB561AA-C3D9-4440-BC60-355F740CEF24?srsltid=AfmBOoqGBoksoE-afRZxVMoAZOGvzTIT-JQQCscwQEEutYThH_USRFFV

Viver intensamente...

... como se fosse o nosso último dia.

Ultimamente tem-se ouvido muito isso, especialmente depois da morte de 2 jogadores de futebol conhecidos (um mais do que o outro). Não me vou alongar nesse assunto. No que vou pegar é nessa frase. Como se apenas na tragédia dos outros é que nos lembrássemos que a vida é para ser vivida ao máximo porque tudo pode acabar num piscar de olhos. 

Pode sim. Mas essa frase não cria também alguma ansiedade? Que stress só de pensar que todos os dias teria de fazer incrível e intenso porque a vida "são 2 dias". Ou que tenho de ir fazer a ronda à família e amigos e dar abraços como "se nunca mais fosse abraçar na vida". Ou ligar a toda a gente a dizer Gosto de Ti... Epa... 

O que vamos fazer mais? andar a 400km/h num carro porque até temos curiosidade? experimentar uns cogumelos porque ouvimos dizer que dá uma "trip incrível"? ir à China a correr porque talvez seja um sítio super improvável de ir? desgraçar-nos em restaurantes de topo porque nunca se sabe se podemos numa comer uma experiência gourmet de 500 euros? fazer bungie-jumping quando não temos vontade? sair todas as noites dançar?

Então, mas depois não nos vendem o slow living? Ou esse é só quando nos esquecemos que a vida é finita?

E se viver intensamente como se fosse o nosso último dia for apenas estar num sítio verde (claro...tinha de ser) a olhar para árvores e pássaros, comer uma simples refeição e deitarmo-nos numa cama de rede num alpendre a observar aquele mundo?

Ainda bem que não sabemos quando morremos, senão dava tudo em doido. 

Aproveitar a vida é fazer o que quisermos. Sem regras ou frases feitas.

Sabem o que fiz depois de ouvir a notícia dos jogadores? Fiquei de coração apertado pelas famílias deles, sobretudo pelos pais sim. Mas sabem o que fiz? Nada.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

O reflexo

 (Conto 1)


Estavam os dois deitados a olhar para o seu reflexo. Este devolvia-lhes uma imagem linda: ele muito moreno, magro, cabelo curto, braços por trás da cabeça, pensativo; ela muito branca, cabelo quase preto e muito comprido, formas suaves, pensativa também.

Ela pergunta-lhe: - Achas que somos más pessoas?

Ele: - Não...

- Não? depois de tudo... Penso muito nisso.

- Não... Somos boas pessoas que se apaixonaram nas alturas erradas. Fizemos coisas condenáveis aos olhos desta sociedade moralista? Sem dúvida. Mas o amor nunca foi uma coisa má. Não somos más pessoas.

Ela pensa um bocado e diz: - Podiamos ser uma pintura neste momento...

- Sim, é a coisa mais bonita que já vi. Nós os dois.

- Mas o timming...

- Esse nunca foi o nosso forte - diz ele convicto.

- Mas agora podia ter sido.

- Mas eu não quero.

- E se não houver timmings perfeitos? E se forem as pessoas a decidir quando acontecem as coisas? É como quando as pessoas querem ter filhos - não há uma altura perfeita, vai sempre haver alguma coisa que faz com que aquela altura não seja a ideal. Mas se nunca se avança, nunca acontecerá.

- Sim. E connosco nunca acontecerá.

- Tens a certeza?

- Sim.

- Porquê?

- Porque temos tudo a nosso "desfavor". 

- Tens medo de tudo...

- Sim, tenho.

- E medo de ser infeliz a longo prazo, não tens medo?

- Acho que me posso habituar a ter sempre uma parte minha que está infeliz, sim.

- Porquê?

- Não sei bem. Porque é o meu dever. E porque até é romântico.

- É romântico ser infeliz?

- Pode ser melancólico. E o melancólico pode ser bonito. E eu gosto de coisas bonitas.

- E se nunca te libertares de mim?

- Não faz mal. Sofrerei muito, mas ninguém desconfiará. Sei qual é o meu dever e o dever está acima de tudo. Até da minha felicidade.

- Vou-me embora então...

- Não!!! Porquê?...

- Porque eu agora só existo nos teus sonhos... e é altura de acordares.


E ele acorda de facto, encharcado em suor. Demora algum tempo a perceber onde está. Está na sua cama na sua zona rural preferida, a antiga casa dos pais que por vezes partilha agora nas férias com o irmão.

Estaá mais velho e, embora cansado, a sua mente ainda fervilha de arte e música, entre outras coisas. O seu filho, separado legalmente há 1 ano, está a viver com a nova namorada, uma mulher que o deixa há muito a sorrir de felicidade. A filha, mais aventureira, mora sozinha com uma amiga numa casa alugada e prepara-se para ir viver uns tempos no estrangeiro. Já teve namorados, mas não se quer prender ainda, é nova. "Fazes bem", pensa ele. 

Vê os filhos só de vez em quando porque passa metade do tempo na terra e, quando está na cidade, a sua casa não é perto deles.

A sua mulher entretanto acorda. São 7h da manhã. Está mais velha também e muito cansada. O peso extremo não ajuda. Ele levanta-se e vai ajudá-la a sair da cama. Ela vai com alguma dificuldade até à sala e senta-se no sofá enquanto ele faz o pequeno-almoço. Comem os dois em silêncio com a TV ligada. Ela quer ir ao supermercado, mas ele está farto dessas idas monótonas. Tudo agora é monótono. Resolve passar a manhã toda na horta e trabalhar e ouvir os pássaros, a sentir o cheiro da terra que ele adora. Ela não liga muito, não tem muita vontade de estar perto da natureza. São diferentes. Fica a ver TV e a pensar o que vai ser o almoço. 

Ao fim da manhã ele volta para dentro de casa e pergunta se ela quer ver uma exposição que há no centro da cidade de um artista japonês. "Lá está ele com isto", pensa ela. Não quer. Mas faz-lhe a vontade já que ali não há muito para fazer e sem miúdos e avós a vida é mais solitária. A exposição é toda vista em silêncio, com um comentário aqui e ali. Ele pensativo e sonhador, ela a pensar na série que quer ver à noite. Como é um dia diferente, jantam fora. Comem em silêncio e ocasionalmente vêm coisas no telemóvel. Não se olham nos olhos, não têm conversas ou planos. Para quê? Já têm alguma idade e é normal sentirem-se assim.

Voltam para a casa e vão-se deitar. Ela adormece rapidamente com uma respiração pesada. Não têm momentos íntimos há muitos anos, ele já perdeu a conta, já não pensa nisso. Ele não consegue dormir com o calor e vai até à sala. Está noite escura, as luzes dos candeeiros desligadas, e lá fora está uma grande lua cheia. Uma lua linda e branca. Invariavelmente pensa "É tão bonita, ao menos posso olhar para ela e sonhar acordado". 

Eventualmente senta-se e adormece no sofá. E, longo da noite, ela aparece nos seus sonhos, de sorriso meigo, olhar intenso e doce. Olha para ele e sorri. Têm sempre muitas conversas. E ele passa os seus dias de velhice a aguardar que as noites venham para ela o visitar e para viver o que nunca teve coragem de viver. Conversam sempre e fazem amor.

As suas noites são por isso muito doces.
Até mesmo a noite em que fecha os olhos pela última vez.



quinta-feira, 10 de julho de 2025

O meu repertório cresceu...

 ... e foi na escola, a ouvir miúdos cheios de sonhos e vontade de tocar.

Um dos grupos interpretou esta canção. Não a conhecia, confesso que gostei mais da versão deles do que da original. Era uma rapariga de 14 anos a cantar e soava de modo tão meigo e bonito. Que bonito que foi...

Não conhecia, mas deixo aqui:



Deambulações...

Mais um pequeno texto, mais uma pequena deambulação, mais um texto que vai cair no vazio da net.


A esta altura meus caros miúdos já vocês serão adultos e terão vivido muita coisa, espero eu: amores e desamores, casamentos e/ou separações, amizades e "desamizades", empregos e desempregos, filhos(?) etc e tal. A vida é isso e há que aceitar o bom e o mau.

O mau por vezes é perdermos um amigo, perdermos um emprego, morrer alguém, essas coisas que ninguém que viva a vida se escapa.

O muito mau é, na minha opinião, aquilo que nem sempre está à vista. Aquilo que nos vai na alma e nos acompanha sem ninguém saber. Uns desconfiam, mas nunca espreitaram de facto lá para dentro. Como irão saber, não é? Depois para os outros temos reações mais estranhas... reações mais afastadas, desligadas, aéreas. Ou pelo contrário, mais agressivas e impulsivas. As pessoas pensam que é um traço de personalidade. Mal sabem elas...

Por vezes, são só consequências da dor e do amor profundo que cá vive dentro. Aquela dor/amor que estupidamente às vezes até é calmo, que conseguimos ir gerindo, mas que por vezes dilacera a malta.

E eu amo profundamente. Um amor que nunca passou realmente. (Quem nunca amou e foi forçado a trancar esse sentimento a sete chaves para poder viver em paz?). Aquele amor que, quando pensamos em certos pormenores, nos faz ficar de coração apertado. Fica quentinho e saudoso e feliz. Mas apertado. Contrai-se levemente. E pensamos: isto não é nada. Esquece. 

Amamos muita gente e muitas coisas na vida e cada amor teve ou tem o seu propósito. 

Há amores que duram sempre. Pensas: gostarei sempre desta pessoa. (seja uma amizade, seja um amor romântico). E convives bem com isso.

A questão é que há amores em que não aceitas. Em que pensas como é possível o teu coração bater baixinho, discretamente e ao mesmo ritmo passado tanto tempo. Há amores que convivem com outros amores diferentes, porque é possível amar de várias maneiras. Mas às vezes esses amores (os primeiros que convivem ainda com algo) são dificeis de ultrapassar, porque não sabemos bem porque é que amamos. Há pessoas de quem dizemos: amo-te porque tens esta e aquela e aqueloutra qualidade. Depois há aquelas pessoas que amamos e nem sabemos bem porquê. Há aquele mesmo olhar para as mesmas coisas, aquela sensação que se entranha de mansinho e não sabemos bem porque isso acontece. Já nem falo de paixão. Essa definitivamente é fogo que arde sem se ver, mas que vai diminuindo. A questão é quando esse tal amor estranho também arde. E às vezes é fogo. E é tão dificil apagá-lo. Tão difícil. Pergunto-me se é mesmo possível...

E se não for? Vive-se a vida toda a ver sítios e novas paragens e novas experiências e a pensar secretamente com uma tristeza escondida o que pensaria o tal amor estranho disto ou daquilo? Ou vive-se a vida a aceitar que nem todos vêm com as mesmas lentes que nós e está tudo bem, e há outros amores que também valem a pena? Consegue-se resistir/viver? Ou eventualmente aceita-se que o que teria de ser, será, e até lá vivemos a nossa vida? Somos nós que o definimos? Ou é o destino que decide por nós? (sei de muitas partidas que o destino já pregou a muita gente)

Temos sempre uma vaga e romântica esperança/desejo que o Amor vence tudo. Vence? É verdade? Ou o que sempre ganhará é o Medo?

Se calhar nunca se saberá. 

Mas por vezes acho que o Amor-Próprio, esse é que tem mesmo de vencer. O amor que temos por nós, para nos pouparmos. O amor que temos pela nossa pessoa esse sim é que tem de nos liderar.

Espero que aprendam isso meus caros. É importante.





quarta-feira, 11 de junho de 2025

Show Me The Money

Olá meus caros,

Já vos contei esta pequena história (e a quem mais quis ouvir) e já nos rimos bastante, vocês a imaginarem estarem presentes a gozar "o prato" quando isto aconteceu e eu a dar por mim a rir-me sozinha sempre que me lembro do momento. Decidi por isso registá-lo aqui, para futuras leituras vossas.

Neste passado fim de semana tivemos um evento familiar que implicou um almoço num restaurante. No dia anterior, sexta, era o dia em que se ia realizar mais um momento do Show Me The Money, da Rádio Comercial, um concurso onde supostamente nos telefonam e a primeira coisa que temos de dizer ao telefone é: Show Me The Money. Se não for essa a primeira coisa, então perdemos e perdemos o dinheiro que nos iria calhar. Desta vez o montante era de 70 000 euros e eles iam telefonar até alguém acertar, ou seja, até alguém atender e dizer a expressão pretendida.

Eu às vezes inscrevo-me nesse concurso. Nem sempre porque odeio dar regularmente  1,5 € + IVA para encher bolsos que não os meus... Mas desta vez o montante era elevado e pensei Why Not!

Ia eu, nesse dia, buscar-vos de carro quando o telefone toca (e a chamada soa no tabliê do carro, que tem a APP do telemóvel ligada a ele). Eu ia, como sempre, com a música alta, a cantar qualquer coisa da minha playlist. Sobressaltei-me e de repente lembrei-me do concurso (estava já a léguas daquilo...). Não estava a reconhecer o número e podia ser qualquer coisa... do concurso, do hospital, de alguma coisa de emprego, daqueles números parvos de phishing, qualquer coisa era válida... Tinha milésimos de segundos para decidir se atendia. 

Atendia? Decidi que sim. Ia arriscar fazer figura de parva e quiçá ganhar alguma coisa? Lá ia ter de ser... 70 000 euros é dinheiro... engoli o orgulho e... embalada e animada pela música anterior atendi e gritei alto e com convicção: 

Show Me The Moneyyyyyyy!!!!!!

Do outro lado uma voz feminina fez um ar/tom de espanto e começou a rir-se . Era uma voz jovem e meio rouca (sexy, devo dizer) disse: "Ahhh... infelizmente não é não. Que pena... Lamento, mas é do restaurante, para confirmar a sua reserva de amanhã e perceber se já tem algum menu decidido."

Damn...

Comecei a rir-me também: "Ora bolas... estava com fé. Fica para a próxima".

Ela: "Mas adorei a convicção ahahahaha. Adorava que tivesse ganho."

Continuámos a conversar mais um bocado. Quando nos despedimos, ela disse:"Boa sorte, que lhe saia o prémio".

Eu: "Se saísse pode apostar que lhe dava amanhã uma grojeta ENORME, por me ter trazido sorte 😄".

No dia do almoço eu percebi quem era a rapariga e fui ter com ela; ela percebeu logo quem eu era também e ainda nos rimos um bocado da situação. Tal como eu, ela tinha contado a várias pessoas o episódio. Quem não gosta de uma boa história parva para contar? 

Haja sentido de humor.

Amén.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Ainda a beleza... ser underdog e não pertencer (parte 1 e 2)

PARTE 1

Estou para escrever isto há algum tempo. Ontem achava que já não ia escrever mais aqui. Não tinha mais nada para dizer. Mas tenho e é sobre tópicos que sempre me interessaram: beleza, inclusão, propósito, pertença.

Há umas semana andei a ver cá em casa este programa (sul)coreano https://www.netflix.com/pt-en/title/81728365 (ver trailer ali)

Isto foi um êxito cá em casa. Ao fim de semana (ou quando apanhámos feriados) lá nos reuniamos todos na sala a ver isto. Os miúdos andavam malucos e eu então... Embora agora tenha mais restrições alimentares ver a competição era fascinante: ver modos incríveis de cozinhar comidas que não me são familiares, ver a competição em si, saber as histórias dos candidatos, apostar em quem ia sair ou não... e principalmente torcer pelo underdog. Eram chefes reconhecidos com vários estrelas (os bata branca) contra chefes incríveis ainda com restaurantes desconhecidos ou pequenos que cozinhavam bem mas não eram conhecidos (os de bata negra). 

Cada um com a sua história: um que era influencer e ninguém o levava a sério, o outro que aprendeu a cozinhar seguindo livros de manga coreanos - de cozinha - (não fazia ideia de que isso existia sequer), outra senhora que era cozinheira numa cantina, outra que era especialista em apenas dumplins na aldeia da sua terra; e outros que eram renomados chefes que já tinha vencido vários concursos, tinham livros escritos, eram lendas vivas, etc e tal.

Curioso também: ver e ouvir falar de ingredientes que não faço ideia do que são e que nunca vou comer (acho eu, nunca digas nunca, tudo na vida é possível - uma vez a senhora russa da limpeza do sítio onde eu trabalhava trouxe-me uma delicatessen russa: pão barrado com carradas de manteiga e caviar por cima!! Meus Deus! que maravilha!! - nunca mais comi caviar na vida diga-se, mas valeu aquele momento).

No meio da competição, a certa altura, um dos desafios era fazer um prato que os definisse, ou que tivesse a ver com o percurso de vida deles. Ao apresentarem o prato que tinham feito, cada um falou então sobre si próprio e todos acabaram por afastar um bocado a máscara que todos temos e revelar um bocadinho a alma também - o que é muito comovente de ver. (só não chorei abertamente em algumas partes porque ia ser gozada à grande pelos miúdos)

Um dos candidatos que me comoveu mais foi estes rapaz: https://www.tiktok.com/@netflixmy/video/7426590706908630290

O nome de guerra dele ali era Cooking Maniac (nenhum dos candidatos podia revelar o seu verdadeiro nome, só se chegassem à final). Um rapaz novinho, cabelo pintado de loiro, cheinho, sofria para xuxu sempre que era avaliado. Enfim. Um rapaz super normal (aos meus olhos pelo menos). Pois a história deste rapaz incluía bullying por ser feio. Sim... feio. No restaurante onde ele trabalhava muitas vezes as pessoas não queriam que ele explicasse a ementa (acho que era assim a história) porque não gostavam do ar assustador que ele tinha... Ele usou a palavra feio para se definir várias vezes. Eu estava de coração apertado por ele. Mas porque é que um rapaz normalíssimo se achava assim tão feio... Como é que as pessoas enfiaram naquela alma essa noção de certeza absoluta que ele assim o era. E... assustador? what? Ok, não era muito sorridente de facto, mas não vi ali candidatos que o fossem abertamente e não sei como são os sul coreanos no geral. Para mim era um tipo sério, asiático, não era magro, mas também não era gordo, com o cabelo amarelo, que adorava cozinhar. Ponto final.

O ar magoado dele a falar nessas agruras da vida incomodaram um bocadinho o meu coração confesso. Talvez por já ter sido também chamada de coisas menos simpáticas no meu passado. Juro que não percebo a forma gratuita como as pessoas dizem certas coisas.

Ele claramente sentia-se o underdog do sítio. Por um lado tinha confiança nas suas capacidades, por outro sentia que era o perdedor, aquele que nunca vai vencer. Não era verdade. Mas por vezes penso que muitos de nós nos sentimos assim... 


PARTE 2

Eu sinto e luto constantemente para contrariar isso. É aquele síndrome chato de impostor. O diabinho em cima do ombro que nos sussura "nunca vais conseguir", em oposição ao anjinho que tenta gritar: "não é verdade, vais sim! persiste!".

O problema às vezes nem é persistir, é não saber o que queremos fazer. Aqui há tempos calhou ver uma entrevista com a atriz Inês Aires Pereira. O ar dela angustiado a dizer que não sabia o que fazer na vida, o que era suposto fazer, o seu propósito... bateu-me. Nem eu. Não sei o que quero ser "quando for grande". Durante uns tempos achei que sabia e fui andando. Estava confiante. Agora já não sei. Voltei à estaca zero. Há quem diga que evoluir e crescer é isso, que o nosso percurso não é uma recta sempre a subir, tem avanços e recuos. Mas bolas... caminhar o nosso caminho custa e muito (tanto a nível profissional como pessoal). E isso angustia-me. Gostava de saber o que vem aí. 

Profissionalmente... sou boa em quê, a fazer o quê? Alguém me vê realmente?

E... qual o meu propósito. Na vida e em tudo. É suposto eu estar aqui a fazer o quê?... Sou mais uma no meio da carneirada? Ou vou conseguir destacar-me em alguma coisa? E destacar significa o quê? destacar-me para as pessoas à minha volta ou para as pessoas além fronteiras?

Tenho fome. Muita fome. De tudo. De viver e conhecer. De ver e sentir. De amar e ser amada. Tenho muita muita fome. Mas às vezes nem sei bem que fome é esta, de onde vem e claro... angústia... para onde me levará. Ou se me levará a algum lado. 

Ter tudo em aberto é uma droga viciante. Porque tudo é possível. Mas... e se não for? E  se nem tudo for possível (nem sei bem o quê). Confesso que nunca tive objetivos de vida ou profissionais muito definidos. Sempre fui andando e decidindo à medida que ia. Será que é suposto ser assim? Ou temos de definir um objetivo muito claro e levar tudo à frente. Por outro lado os nossos objetivos mudam consoante os anos passam...

Depois vem o sentimento... aquele do qual nunca falei. Aquela infinita sensação de que não pertenço a lado nenhum. Não encaixo verdadeiramente em lado nenhum. Disfarço bem com o meu lado social. Mas sei que não pertenço verdadeirmente a lado nenhum. Deve ser por isso que a minha alma está sempre inquieta, sempre à procura, quer ver sempre mais, talvez um dia chegue ao lugar onde pertenço, talvez não. Talvez isso não exista. Talvez o suposto seja andarmos precisamente a procurar e descobrir. Talvez um dia quando for velhinha (hope so) olhe para trás e descubra que afinal tudo pelo que passei fez sentido e que pertenço ao mundo. Ou que simplesmente pertenço a mim própria apenas.

God... isto é muito confuso. E cansativo. 

Preciso de férias. Sozinha de preferência. Numa cabana de madeira, no meio de uma floresta, com um lago calmo ali perto, um pequeno barco para poder remar, uma cadeira lá fora, um livro na mão... e vá... um casaquinho para quando começar a arrefecer à noite.