segunda-feira, 14 de julho de 2025

O reflexo

 (Conto 1)


Estavam os dois deitados a olhar para o seu reflexo. Este devolvia-lhes uma imagem linda: ele muito moreno, magro, cabelo curto, braços por trás da cabeça, pensativo; ela muito branca, cabelo quase preto e muito comprido, formas suaves, pensativa também.

Ela pergunta-lhe: - Achas que somos más pessoas?

Ele: - Não...

- Não? depois de tudo... Penso muito nisso.

- Não... Somos boas pessoas que se apaixonaram nas alturas erradas. Fizemos coisas condenáveis aos olhos desta sociedade moralista? Sem dúvida. Mas o amor nunca foi uma coisa má. Não somos más pessoas.

Ela pensa um bocado e diz: - Podiamos ser uma pintura neste momento...

- Sim, é a coisa mais bonita que já vi. Nós os dois.

- Mas o timming...

- Esse nunca foi o nosso forte - diz ele convicto.

- Mas agora podia ter sido.

- Mas eu não quero.

- E se não houver timmings perfeitos? E se forem as pessoas a decidir quando acontecem as coisas? É como quando as pessoas querem ter filhos - não há uma altura perfeita, vai sempre haver alguma coisa que faz com que aquela altura não seja a ideal. Mas se nunca se avança, nunca acontecerá.

- Sim. E connosco nunca acontecerá.

- Tens a certeza?

- Sim.

- Porquê?

- Porque temos tudo a nosso "desfavor". 

- Tens medo de tudo...

- Sim, tenho.

- E medo de ser infeliz a longo prazo, não tens medo?

- Acho que me posso habituar a ter sempre uma parte minha que está infeliz, sim.

- Porquê?

- Não sei bem. Porque é o meu dever. E porque até é romântico.

- É romântico ser infeliz?

- Pode ser melancólico. E o melancólico pode ser bonito. E eu gosto de coisas bonitas.

- E se nunca te libertares de mim?

- Não faz mal. Sofrerei muito, mas ninguém desconfiará. Sei qual é o meu dever e o dever está acima de tudo. Até da minha felicidade.

- Vou-me embora então...

- Não!!! Porquê?...

- Porque eu agora só existo nos teus sonhos... e é altura de acordares.


E ele acorda de facto, encharcado em suor. Demora algum tempo a perceber onde está. Está na sua cama na sua zona rural preferida, a antiga casa dos pais que por vezes partilha agora nas férias com o irmão.

Estaá mais velho e, embora cansado, a sua mente ainda fervilha de arte e música, entre outras coisas. O seu filho, separado legalmente há 1 ano, está a viver com a nova namorada, uma mulher que o deixa há muito a sorrir de felicidade. A filha, mais aventureira, mora sozinha com uma amiga numa casa alugada e prepara-se para ir viver uns tempos no estrangeiro. Já teve namorados, mas não se quer prender ainda, é nova. "Fazes bem", pensa ele. 

Vê os filhos só de vez em quando porque passa metade do tempo na terra e, quando está na cidade, a sua casa não é perto deles.

A sua mulher entretanto acorda. São 7h da manhã. Está mais velha também e muito cansada. O peso extremo não ajuda. Ele levanta-se e vai ajudá-la a sair da cama. Ela vai com alguma dificuldade até à sala e senta-se no sofá enquanto ele faz o pequeno-almoço. Comem os dois em silêncio com a TV ligada. Ela quer ir ao supermercado, mas ele está farto dessas idas monótonas. Tudo agora é monótono. Resolve passar a manhã toda na horta e trabalhar e ouvir os pássaros, a sentir o cheiro da terra que ele adora. Ela não liga muito, não tem muita vontade de estar perto da natureza. São diferentes. Fica a ver TV e a pensar o que vai ser o almoço. 

Ao fim da manhã ele volta para dentro de casa e pergunta se ela quer ver uma exposição que há no centro da cidade de um artista japonês. "Lá está ele com isto", pensa ela. Não quer. Mas faz-lhe a vontade já que ali não há muito para fazer e sem miúdos e avós a vida é mais solitária. A exposição é toda vista em silêncio, com um comentário aqui e ali. Ele pensativo e sonhador, ela a pensar na série que quer ver à noite. Como é um dia diferente, jantam fora. Comem em silêncio e ocasionalmente vêm coisas no telemóvel. Não se olham nos olhos, não têm conversas ou planos. Para quê? Já têm alguma idade e é normal sentirem-se assim.

Voltam para a casa e vão-se deitar. Ela adormece rapidamente com uma respiração pesada. Não têm momentos íntimos há muitos anos, ele já perdeu a conta, já não pensa nisso. Ele não consegue dormir com o calor e vai até à sala. Está noite escura, as luzes dos candeeiros desligadas, e lá fora está uma grande lua cheia. Uma lua linda e branca. Invariavelmente pensa "É tão bonita, ao menos posso olhar para ela e sonhar acordado". 

Eventualmente senta-se e adormece no sofá. E, longo da noite, ela aparece nos seus sonhos, de sorriso meigo, olhar intenso e doce. Olha para ele e sorri. Têm sempre muitas conversas. E ele passa os seus dias de velhice a aguardar que as noites venham para ela o visitar e para viver o que nunca teve coragem de viver. Conversam sempre e fazem amor.

As suas noites são por isso muito doces.
Até mesmo a noite em que fecha os olhos pela última vez.



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