quinta-feira, 31 de julho de 2025

O poema

 (Conto 3)


E ela entrou na sala. Vestia um vestido simples. O cabelo comprido e castanho escuro tinha sido seco há minutos e esvoaçava ligeiramente ao pé da janela aberta que dava para uma colina verdejante. Estavam num apartamento pequeno durante apenas uns 3 dias, fim de semana prolongado. Daqueles fins de semana algures longe de tudo, em que só se ouve o silêncio e os grilos lá fora. Aqueles em que o calor aperta e o tempo pára.

Alheia a qualquer olhar ela parou em frente à janela e respirou o ar puro. Nada batia as flores e o verde à sua frente. A mente dela esvaziou-se e nada existia, apenas aquele impulso imperioso dos pulmões a respirar ar puro. Quase fechou os olhos... Adorava momentos de silêncio quase tanto como adorava o rebuliço de pessoas à sua volta, ou o som potente de música a tocar.

Silenciosamente como sempre, ele observava-a, sentado numa cadeira, parando o que estava a fazer. Não com apetite voraz. Mas como quem olha uma obra de arte, a absorver o modo como a franja lhe caía teimosamente sob o olho esquerdo, como o tecido do vestido lhe abraçava o contorno do rabo e das pernas, o modo como ela se movia lenta e pensativamente.

Ela sorriu então e lembrou-se das palavras dele um dia:

"Tu és um poema."

E era assim que ela se sentia sempre que ele a olhava silenciosamente daquele modo...

Ela seria sempre um poema, o poema dele.


terça-feira, 15 de julho de 2025

O burro

 Vivo numa zona (meio) rural. Casas baixinhas, campo à volta, pessoas com hortas, descampados com oficinas de carros. Durante uns anos ouvia sempre um galo. De manhã lá cantava ele, felizmente não às 5 ou 6h da manhã.

Depois nunca mais ouvi o cantar do galo. Houve silêncio uns tempos. Agora oiço o zurrar de um burro. 

Ao início pensei que estava maluca. Um burro? Aqui perto? Mas de quem? Quem é que aqui precisa de um burro? Ouvia-o mais de manhã. 

Agora oiço de manhã, à tarde e à noite. Não tem horários o animal.

Faz-me sorrir.

É muito curioso. Um burro. (para que servirá ele?)



p.s. Faz-me lembrar um livro que li quando era teenager e que me fez verter lágrimas infinitas. O livro é lindo e comovente. Chama-se Memórias de Um Burro e era da Condessa de Ségur de quem li vários livros na altura. Recomendo muito a toda e qualquer alma sensível:
 https://www.travessa.pt/Artigo/Detalhe/memorias-de-um-burro/artigo/7DB561AA-C3D9-4440-BC60-355F740CEF24?srsltid=AfmBOoqGBoksoE-afRZxVMoAZOGvzTIT-JQQCscwQEEutYThH_USRFFV

Viver intensamente...

... como se fosse o nosso último dia.

Ultimamente tem-se ouvido muito isso, especialmente depois da morte de 2 jogadores de futebol conhecidos (um mais do que o outro). Não me vou alongar nesse assunto. No que vou pegar é nessa frase. Como se apenas na tragédia dos outros é que nos lembrássemos que a vida é para ser vivida ao máximo porque tudo pode acabar num piscar de olhos. 

Pode sim. Mas essa frase não cria também alguma ansiedade? Que stress só de pensar que todos os dias teria de fazer incrível e intenso porque a vida "são 2 dias". Ou que tenho de ir fazer a ronda à família e amigos e dar abraços como "se nunca mais fosse abraçar na vida". Ou ligar a toda a gente a dizer Gosto de Ti... Epa... 

O que vamos fazer mais? andar a 400km/h num carro porque até temos curiosidade? experimentar uns cogumelos porque ouvimos dizer que dá uma "trip incrível"? ir à China a correr porque talvez seja um sítio super improvável de ir? desgraçar-nos em restaurantes de topo porque nunca se sabe se podemos numa comer uma experiência gourmet de 500 euros? fazer bungie-jumping quando não temos vontade? sair todas as noites dançar?

Então, mas depois não nos vendem o slow living? Ou esse é só quando nos esquecemos que a vida é finita?

E se viver intensamente como se fosse o nosso último dia for apenas estar num sítio verde (claro...tinha de ser) a olhar para árvores e pássaros, comer uma simples refeição e deitarmo-nos numa cama de rede num alpendre a observar aquele mundo?

Ainda bem que não sabemos quando morremos, senão dava tudo em doido. 

Aproveitar a vida é fazer o que quisermos. Sem regras ou frases feitas.

Sabem o que fiz depois de ouvir a notícia dos jogadores? Fiquei de coração apertado pelas famílias deles, sobretudo pelos pais sim. Mas sabem o que fiz? Nada.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O meu repertório cresceu...

 ... e foi na escola, a ouvir miúdos cheios de sonhos e vontade de tocar.

Um dos grupos interpretou esta canção. Não a conhecia, confesso que gostei mais da versão deles do que da original. Era uma rapariga de 14 anos a cantar e soava de modo tão meigo e bonito. Que bonito que foi...

Não conhecia, mas deixo aqui:



Deambulações...

Mais um pequeno texto, mais uma pequena deambulação, mais um texto que vai cair no vazio da net.


A esta altura meus caros miúdos já vocês serão adultos e terão vivido muita coisa, espero eu: amores e desamores, casamentos e/ou separações, amizades e "desamizades", empregos e desempregos, filhos(?) etc e tal. A vida é isso e há que aceitar o bom e o mau.

O mau por vezes é perdermos um amigo, perdermos um emprego, morrer alguém, essas coisas que ninguém que viva a vida se escapa.

O muito mau é, na minha opinião, aquilo que nem sempre está à vista. Aquilo que nos vai na alma e nos acompanha sem ninguém saber. Uns desconfiam, mas nunca espreitaram de facto lá para dentro. Como irão saber, não é? Depois para os outros temos reações mais estranhas... reações mais afastadas, desligadas, aéreas. Ou pelo contrário, mais agressivas e impulsivas. As pessoas pensam que é um traço de personalidade. Mal sabem elas...

Por vezes, são só consequências da dor e do amor profundo que cá vive dentro. Aquela dor/amor que estupidamente às vezes até é calmo, que conseguimos ir gerindo, mas que por vezes dilacera a malta.

E eu amo profundamente. Um amor que nunca passou realmente. (Quem nunca amou e foi forçado a trancar esse sentimento a sete chaves para poder viver em paz?). Aquele amor que, quando pensamos em certos pormenores, nos faz ficar de coração apertado. Fica quentinho e saudoso e feliz. Mas apertado. Contrai-se levemente. E pensamos: isto não é nada. Esquece. 

Amamos muita gente e muitas coisas na vida e cada amor teve ou tem o seu propósito. 

Há amores que duram sempre. Pensas: gostarei sempre desta pessoa. (seja uma amizade, seja um amor romântico). E convives bem com isso.

A questão é que há amores em que não aceitas. Em que pensas como é possível o teu coração bater baixinho, discretamente e ao mesmo ritmo passado tanto tempo. Há amores que convivem com outros amores diferentes, porque é possível amar de várias maneiras. Mas às vezes esses amores (os primeiros que convivem ainda com algo) são dificeis de ultrapassar, porque não sabemos bem porque é que amamos. Há pessoas de quem dizemos: amo-te porque tens esta e aquela e aqueloutra qualidade. Depois há aquelas pessoas que amamos e nem sabemos bem porquê. Há aquele mesmo olhar para as mesmas coisas, aquela sensação que se entranha de mansinho e não sabemos bem porque isso acontece. Já nem falo de paixão. Essa definitivamente é fogo que arde sem se ver, mas que vai diminuindo. A questão é quando esse tal amor estranho também arde. E às vezes é fogo. E é tão dificil apagá-lo. Tão difícil. Pergunto-me se é mesmo possível...

E se não for? Vive-se a vida toda a ver sítios e novas paragens e novas experiências e a pensar secretamente com uma tristeza escondida o que pensaria o tal amor estranho disto ou daquilo? Ou vive-se a vida a aceitar que nem todos vêm com as mesmas lentes que nós e está tudo bem, e há outros amores que também valem a pena? Consegue-se resistir/viver? Ou eventualmente aceita-se que o que teria de ser, será, e até lá vivemos a nossa vida? Somos nós que o definimos? Ou é o destino que decide por nós? (sei de muitas partidas que o destino já pregou a muita gente)

Temos sempre uma vaga e romântica esperança/desejo que o Amor vence tudo. Vence? É verdade? Ou o que sempre ganhará é o Medo?

Se calhar nunca se saberá. 

Mas por vezes acho que o Amor-Próprio, esse é que tem mesmo de vencer. O amor que temos por nós, para nos pouparmos. O amor que temos pela nossa pessoa esse sim é que tem de nos liderar.

Espero que aprendam isso meus caros. É importante.