quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

A estante

Foi há pouco menos de um ano. Tinha ido a um jantar com um grupo de pessoas que mal conhecia, na casa de uma delas (estes jantares são raros, mas às vezes lá surgem). Era um grupo diversificado de homens e mulheres. Uns com os conjuges, outros sem estes. 

Sentia-me intimidada. Falava-se muito de política e assuntos similares; encolho-me sempre um bocado. Tenho alguma cultura geral e tento andar a par do que se passa a nível nacional e internacional, mas o meu conhecimento de História (economia, guerras, sociedade) é apenas médio (ou será que é médio-baixo ahaha). Mas tento. Leio, depois esqueço-me ou pior... baralho as histórias!! (lembro-me de há uns anos ter tido em casa um amigo estrangeiro e antes de ele vir andei 2 semanas a estudar a história do nosso país para refrescar a memória...) 

O que aqui interessa salientar é que acho sempre que os outros são mais eruditos e conhecedores do que eu. Sinto-me uma naba, é literalmente o Síndrome do Impostor - o pavor de um dia todos descobrirem que sou uma fraude. Mas o pior mesmo é quando estou num grupo e alguém diz a apontar para mim (e a dizer o meu nome) "Olha, tu deves saber, fala lá sobre isto x e y...". Odeio. Odeio que me atirem para a frente e me metam na berlinda sem eu ter escolhido. Gosto de me chegar à frente, não tenho medo quando sou eu escolher o momento. Mas se o momento me aparece sem o ver previamente... dá-me uma coisita má cá dentro, pânico súbito... Mas tenho de me aguentar à bomboca. Afinal, já sou crescidinha.

Estava eu no tal jantar... A certa altura começo a observar uma das pessoas... Homem, informático, os seus 30 e tal anos. Sorriso pepsodent. Sorriso falso. Não sei. Nunca fui muito à bola com ele. Ele começa a deambular pela sala sozinho e começa a aproximar-se de uma estante. A estante tinha várias coisas: objetos e livros. Muitos livros. Ele começa a ver as lombadas e eu começo a sorrir. Faço exatamente a mesma coisa quando vou a casa de alguém (se bem que se alguém for à minha sala... os livros das estantes não são propriamente os que mais gostei de ler, às vezes são apenas os mais bonitos que foram escolhidos para colocar ali...). 

Eu estava no lado oposto da estante e, ao caminhar lentamente a ver os livros, ele chegou mais perto de mim. Disse-lhe: "Estou a ver que também gostas de saber o que lêem os donos da casa...  " (neste caso era uma mulher divorciada). Ele riu-se: "Verdade. Adoro ler e este é sempre um modo de saber mais sobre quem vive numa casa, vês o tipo de gosto da pessoa". 

Trocámos mais umas palavras, que género de livros liamos, etc. Percebi nas entrelinhas que aquele ato era também um modo de ele se proteger das conversas eruditas e inflamadas da sala, ele era também um introvertido-extrovertido. Também ele sabia umas coisas sobre o mundo, mas era inseguro, sabia e ao mesmo tempo "nada sabia". Percebi que acharia o máximo se começassemos a fazer tertúlias volta e meia, falar sobre tudo e nada. Nunca aconteceu. Mas a ideia ficou-me. 

As pessoas serão sempre pessoas. Por fora mostram uma coisa, por dentro são outra. Todos temos receio de sermos julgados ou incompreendidos. A única diferença é que os que falam e mostram e aparecem voluntariamente... vão, arriscam, expoem-se, mesmo com medo. Mas vão.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Gata em telhado de zinco quente

Sim, isto é uma alusão ao filme.

Não, não há nenhuma gata. Sou só eu, humana, cheia de falhas e longe de ser um ser distante e digno de veneração - como os antigos egipcios se relacionavam com os seus felinos.

Mas há um gato.

O telhado também não é de zinco. São telhas normais e alaranjadas.


Foi há dias, num fim de semana.

Cá em casa desde que este belo ser que vigia ferozmente a janela ao meu lado (neste momento) veio viver cá para casa, que as janelas e portas da rua passaram a nunca ser abertas totalmente para arejar a casa (sim, por vezes é uma dor de cabeça, porque é uma preocupação constante...). No piso de baixo, abro o suficiente para arejar mas para ele não conseguir passar - no piso de cima ele tem livre acesso, se algum dia voar lá para baixo a perseguir um pássaro... logo se vê.

Se é preciso abrir a porta a alguém da rua tenho sempre de fechar o bicho em algum sítio, porque ele é muito curioso sobre o que há na rua, e já se sabe que a curiosidade matou o gato. E eu não quero que ele morra.

Aos sábados de manhã, se não há jogos ou algo onde se tenha de sair, aproveito e coloco o gato no jardim (de trela) para o animal ter uns momentos felizes de National Geographic. A trela é comprida e ele tem muito por onde passear e se esconder. Nesse momento aproveito e abro tudo no sotão. Sotão esse cuja parte exterior tem acesso direto a telhas e tem vista em todo o redor. 

Pois aqui há dias, eu, que tenho sempre muito cuidado quando o gato volta para dentro de casa, de fechar o sotão para ele não ter a bela ideia de se escapulir, esqueci-me completamente... Eu, este ser divino e digno de veneração que nunca falha, que sabe tudo e que está lá bem em cima no Olimpo (será que morri? dizem que quem se venera são os Santos)... cometi O Erro que não queria cometer. Deixei tudo aberto e o gato claro... foi à aventura como seria de esperar. 

Percebi isso tinha já passado 1h. 1h!! O que me valeu foi ele não ter ido longe. Quando dei por isso em 5 segundos tinha subido vários lances de escada, a pensar se esse era o dia em que também eu ia andar a meter papeis de Procura-se ou Perdido nos postes da rua. Cheguei à porta de fora do sotão e olhei em volta, gato: zero. Via as casas a seguir e nada de gato.

De repente, olho para a esquerda e ali bem a meio das telhas (eu não conseguiria chegar lá) estava o bicho, o meu boneco de peluche animado, o gato da Alice, completamente relaxado a respirar ar puro, a gozar o sol no focinho e no pelo, deitado como se nada fosse. A apreciar a paisagem.

Pensei: como raio é que o vou lá buscar? vou atraí-lo com uma lata de comida? e se ele vai para mais longe enquanto vou buscar a lata? 

Mas não foi preciso. Respirei fundo e mantive-me calma para não o assustar. As moscas não se caçam com vinagre e eu sei ser mel... chamei-o suavemente. E ele... veio até mim!!!!

Caramba! Eu nem queria acreditar!! Ele quando o chamei levantou-se e veio até mim, eu nem queria acreditar o quão fácil tinha sido. O engraçado disto é que estou sempre a alertar a malta toda para terem cuidado com as portas abertas e o bicho etc etc, e no fim de contas acabei por ser eu a deixá-lo sair. 

Mas vá, já me perdoei, acontece. E melhor cuidado e protegido do que ele é cá em casa, é impossível. Este sim, um animal adorado por todos, aquele que me fazia gastar a hora de almoço há uns meses, quando eu ia a casa, almoçava em 10 minutos e voltava ao trabalho, apenas para ele não estar o dia todo sozinho. Entretanto deixei-me disso porque a gasolina está cara. E porque ele dorme o dia todo se o deixar.

Mulheres, ruas e andar sozinha à noite

Foi há muitos anos. 

Estava num país estrangeiro e já não vivia dentro de uma residência de estudantes nem andava sempre em grupo. Vivia agora num apartamento que dividia com mais 3 pessoas, 2 das quais mal me dirigiam palavra e desapareciam ao fim de semana sem dar qualquer aviso ou conversa (se morressem ou desaparecessem eu nem saberia, e vice-versa).

Para enganar a solidão desta nova situação (fui expulsa da residência porque estava lá há tempo demais e não pertencia à faculdade) continuava a visitar os meus amigos da tal residência. Durante o dia ia trabalhar e ao fim da tarde rumava para lá diretamente e jantava com amigos; ou jantava primeiro em casa (no quarto ou na cozinha - não tinhamos sala, o dono do apartamento tinha convertido a sala em mais um quarto) e depois ia até à residência visitar quem por lá estivesse. Durante 2 anos não tive TV, só lia livros ou revistas, ouvia música e tentava estar a par das notícias conforme ia conseguindo.

Uma noite houve uma festa (mais uma entre muitas). E a festa durou a noite toda e entrou pela nova manhã adentro. (imagino que era fim de semana, acho que não faria isso durante a semana estando a trabalhar, já aí era super responsável, mas já não me lembro). 

Saí da residência sozinha e apanhei o primeiro elétrico do dia. Estava tão mas estão escuro que parecia ainda serem umas 3h da manhã. Cheguei ao meu destino, uma zona mais marginal, fora do centro onde para ir ter à minha casa tinha de passar por baixo de uma pequena ponte mal iluminada, mas que tinha um foco super forte apontado a um canto. Aquele bocado era tão mas tão poluído que quando passava ali fechava a boca, as narinas e os pulmões se pudesse, porque o cheiro era suficiente para nos matar. Passar ali era assustador confesso... vinham-me sempre à mente histórias de assassinatos e coisas macabras que acontecem quando menos se espera, precisamente num lugar como aquele.

Estava tão escuro e com apenas alguns focos de luz aqui e ali que toda eu estava em alerta. Ouvia tudo, rodava a cabeça para todos os lados para ver se via alguém... Quando estamos sozinhas na rua à noite tudo é motivo para alerta. Não confio em ninguém. Estava pronta para correr a maratona se visse algum sinal de alarme. 

Comecei a caminhar pela rua que estava deserta e a certa altura o sol começou a nascer, mas mesmo assim ainda estava tudo muito escuro. Perguntei-me porque raio me estava a colocar naquela situação, um bocado vulnerável, mas por outro lado não queria que o medo me impedisse de me divertir e de visitar quem queria e ir às festas que queria. Fiz-me de forte, pensei que estava tudo bem e continuei a caminhar rapidamente pelas ruas (mas evitei um pequeno parque com vegetação aqui havia ali). 

A certa altura gelei... Surge numa das ruas um rapaz com ar bastante alucinado. Caminhava muito depressa e vinha alguns metros atrás de mim. Eu não percebia se ele vinha ter comigo ou se ia no seu caminho mas por acaso eu estava no tracejado que ele seguia. Comecei a andar cada vez mais depressa. E ele fez o mesmo. Andava cada vez mais depressa, quase corria. Vinha na minha direção a aproximar-se de mim, com o tal sorriso estranho e alucinado. Eu andava cada vez mais depressa... cheguei a pensar se era dessa que ia fazer parte de uma daquelas estatísticas horríveis de mortes ou violações. Mas não ia não. 

Comecei a andar tão depressa que já corria. Numa espécie de flash momentâneo decidi que o melhor que tinha a fazer era procurar alguém na rua. Se fosse ter com alguém talvez o tal rapaz parasse de me seguir. Mas as ruas estavam desertas.

A certa altura (pareceu uma eternidade) comecei a ouvir uma espécie de estores a subir. Eram alguns cafés a iniciar o movimento. Deviam ser já 6h da manhã e o pessoal começava a preparar as coisas. Mas eu ouvia o barulho, mas não via nada a abrir. Até que vi uma loja com alguém lá dentro, via-se luz e as grades a mexer. Andei/corri o mais que pude. Só queria chegar até lá, bater à porta e que me deixassem entrar. Só queria que alguém me visse.

Fiz um desvio súbito grande em direção à tal loja e nesse momento olhei para trás. O rapaz continuava a andar depressa ou correr (já nem sei) e tinha o mesmo sorriso alucinado na cara (provavelmente estava cheio de drogas no sistema), mas não me seguiu. Continuou a andar em frente até que desapareceu.

Nem sei descrever o alívio... Quando abrandei o ritmo, acabei por não bater à janela da loja. Continuei caminho mas tinha o coração a sair-me do peito e as pernas a fraquejar. Nunca percebi se o rapaz me estava a seguir ou não. Mas não ganhei para o susto. Cheguei a casa e fui tentar dormir.

Tenho a certeza de que um rapaz não se teria sentido assim. Com tanto medo.

A senhora do Tai Chi

Sempre que ando ou corro vejo as mesmas pessoas a correr ou andar (já aqui o referi antes).

Há o tal senhor que quando passa por mim, por entre um grupo de homens mais velho, me cumprimenta, e há também uma senhora chinesa que costuma estar no seu momento Tai Chi.

Sinto muita curiosidade por ela. 

Tem cabelo escuro, relativamente curto e ondulado. Uma cara grande, entre o redondo e o quadrado. Está sempre a sorrir (e não, não são os olhos) e na maioria das vezes está a um canto a fazer os seus movimentos lentos e longos de Tai Chi.

Já a vi a caminhar. Já a vi a tirar fotografias. Mas o meu momento preferido é quando está na sua a fazer os seus exercícios. Dá-me vontade de ir lá e pedir para fazer o mesmo com ela. Quero que ela me ensine. Quero que ela me diga qual é o propósito de estar a fazer aquilo. Sente-se melhor depois de o fazer? É secante? Fá-lo porque foi ensinada desde pequena a fazê-lo? Fá-lo porque é tradição? Porque lhe faz mesmo bem?

A maioria das pessoas passa a correr ou a andar. Mas ela não.

Há quem faça yoga ao ar livre (com professora), há quem faça boxe. É fascinante ver o esforço de cada um no seu desporto. Uns fazem com mais afinco do que outros. O que se passará naquelas mentes?

Acho que o meu desporto favorito é definitivamente observar pessoas.