Olá meus caros,
Sobre amizades que são família...
Tinha 15 anos. Mais uma vez mudava de escola (dos 10 aos 17 anos mudei 3 vezes de escola pública - antes estive em creches e num colégio privado especializado no ensino musical). Já não me lembro se estava no 2º periodo ou 3º. Saía todos os dias de casa e ia de manhã apanhar o autocarro para a escola. Invariavelmente comecei a ver as mesmas pessoas por ali. Todos nós fazíamos o mesmo: ensonados, lá chegavamos lentamente à paragem com ar de quem dormiria mais um bocado, ou então corriamos desalmadamente para chegar mesmo no segundo em que o autocarro chegava... precisamente porque tinhamos dormido mais um bocado. E, tal como eu, todos os dias uma determinada rapariga colocava-se na fila. A situação repetiu-se, dias, semanas e meses.
Um dia o autocarro não chegou. Todos nós esperámos vários minutos, a certa altura quase 1h. De súbito, um carro pára ao pé da fila e alguém lá dentro chama a tal rapariga. Ela acena, entra e fecha a porta. Segundos depois volta a abri-la e chama-me, pergunta-me se quer ir com ela e com a avó (ou era a mãe?) que tinha passado ali e percebido o que se passava. Eu sabia que ela andava na mesma escola que eu porque saíamos na mesma paragem, mas não a costumava encontrar muito. Fui.
A partir daí nunca mais nos largámos. Sempre que nos sentavamos no autocarro iamos juntas a falar. Percebi que morava muito perto da paragem e um dia, depois da escola, acabei por ir para casa dela. Não havia assunto sobre o qual não falássemos e não havia parvoíce que não dissessemos. Não sabia ainda, mas aquela ia ser uma amizade para a vida. Ou eu ia para casa dela ou ia ela para a minha. Acho que ia eu mais a casa dela, ou porque estava logo ali depois da paragem, ou porque estavamos mais vezes sozinhas. Ela não queria saber se a casa dos meus pais era uma vivenda ou se tinha piscina (aliás o condomínio é que tinha! um atrativo gigante para os amigos e conhecidos nessa fase. Quando conhecia alguém novo demorava meses (ou anos) até dizer algo sobre a piscina... odiava o súbito interesse na minha pessoa depois disso. Aliás, até hoje nunca refiro o que tenho ou não tenho). Ela genuinamente divertia-se comigo e adorava a minha companhia e isso bastava. Eu também não queria saber se ela vivia numa casa pequena ou grande. Era minha amiga e bastava.
Com o tempo percebi porque é que eramos como 2 ímanes atraídos um pelo outro. Tenho percebido com os anos (já são alguns agora) que há sempre uma razão profunda para as pessoas se conectarem - mesmo quando não sabem logo porque isso acontece. Imagino que devemos ter algum tipo de energia, alguma... não sei... aura... que a outra pessoa capta. Às vezes aparentemente as pessoas parecem muito diferentes à superfície, mas no fundo são muito similares. Ou há algum trauma escondido, algum traço de personalidade, há sempre algo. No caso dela, o nosso elo profundo era saber como a outra se sentia no meio de uma vida familiar infeliz. Nem precisavamos de falar...
Tal como eu, ela era filha única. E, tal como eu, assistia e vivia na pele viver num lar sem amor. Aparentemente tudo funcionava bem. Famílias normais, empregos normais, escolas normais, férias normais, conversas normais. Porta adentro... assistiamos a uma frieza de relações e por vezes a uma violência verbal sem par. Nunca consegui comparar com precisão porque só tinha aquilo que ela me contava. Mas percebia que por vezes não queria ir para casa, entendia a sensação de querer estar sempre noutro lugar (algo comum a mim). Percebi que a desestabilização nas nossas casas era sobretudo provocada por discussões cujo cerne tinha a ver com o vazio emocional dos pais (homens). Era um vazio emocional direcionado às suas mulheres e por tabela o mesmo se passava em relação às filhas. Eram homens e pais indisponíveis emocionalmente (ainda hoje o são). Os casamentos estavam claramente em crise e isso refletia-se no dia a dia (se bem que agora adulta, sei que para dançar o tango são precisas duas pessoas, e um casamento não falha só por culpa de uma). Mas o vazio emocional, o egoísmo brutal deles e o peso das palavras violentas para com as nossas mães (e a resposta delas) teve o seu impacto em nós, miúdas. Da minha parte, percebi mais tarde que assistir ao casamento dos meus pais fez-me fechar a qualquer tipo de amor. Fugia a 7 pés de namoros ou de algo onde me sentisse aprisionada. Era fria e joguei algumas vezes com os sentimentos de pessoas, numa espécie de vingança. A mim não me apanhariam nessa história de ficar rendida e depois sofrer. Na altura, não colocava isto por palavras, só mais tarde é que consegui verbalizar e com ajuda.
Por causa disso sei também que perdi algumas oportunidades que podiam ter sido bonitas naquela fase da vida (teenager). Lembro-me bem de, num determinado ano, ter 2 rapazes que entravam sempre no mesmo autocarro que eu, de volta para casa. Um muito, muito calado. Muito tímido. O outro, o oposto - claro. Super desbocado, super pateta - tivesse eu tido a coragem de ser amiga dele e tinha-me divertido à grande de certeza. O desbocado estava a ajudar o amigo. Mandava bocas, mandava indiretas - eu percebia que era sobre mim. Às vezes dizia-lhe: Vai lá falar com ela!! O outro a morrer de vergonha. Coitado... sofreu um bocado ali às mãos do amigo. Mas este só queria ver se a coisa se desenrolava.
E eu com o meu ar impávido e sereno... protegida pela frieza, fruto de não me sentir a pessoa mais bonita e apreciada do mundo (e não era! a fase patinho feio durou uns anos! especialmente quando comparada com amigas muito giras que tinha). Não sei o que viu o tal miúdo em mim... Nunca tinha sido alvo óbvio da atenção de alguém e não sabia como reagir. Mas também já tinha sido rejeitada e agora a minha resposta silenciosa era o ignorar um possível pretendente. Tinha medo. O amor não era algo que fosse para mim. Tinha estado 2 anos inteiros antes com uma paixão platónica assoberbada por um rapazito de outra escola, ao qual nunca tive coragem de dizer 2 frases inteiras (mas cheguei a conhecê-lo!). Mas... porque diria? (descobri já mais tarde que, em tudo na vida(!), o máximo que te podem dizer é Não. Esse é garantido. Mas às vezes há Sins. E para chegar aos Sisn tens de ouvir alguns Nãos. Faz parte.) Não era definitivamente a miúda mais gira da turma/escola, de todo ahaha, havia muitas interessadas nele, nunca teria hipótese.
Mas falava eu da minha amiga. Ela era de facto linda e muito boa amiga. E curiosamente tinha interesses muito parecidos aos meus. Não sei porquê ambas adorávamos kung fu e nessa altura vi todos os filmes do Bruce Lee. Adorava o homem. O pai dela tinha matracas em casa (devia praticar algum desporto desse estilo, já não me lembro) e punhamo-nos a treinar com aquilo. Acho que ainda demos uns belos toques no armário dela (e nas nossas pernas e braços) à conta disso... mas ao fim de algum tempo conseguimos dominar minimamente o objeto e fazer alguns exercícios.
Às vezes ela irritava-me. Era muito gira na altura e os rapazes gravitavam em volta dela como moscas a babarem-se. Rapazes miúdos e graúdos. Ela tinha um gesto, para mim nada natural - era feito propositadamente, em que baixava os olhos (como se fosse muito envergonhada) e encolhia os ombros. "Sou mesmo envergonhada e querida" dizia o gesto. Apetecia-me dar-lhe 2 estalos e dizer que estava a ser ridícula, que não precisava de fazer aquele número para ter uma fila de rapazes aos pés; que eles faziam fila na mesma se ela ficasse parada sem falar ou pestanejar. Nunca lhe disse nada. Mas vontade não me faltou.
Com ela vivi histórias muito engraçadas, como o dia em que, depois de uma noitada em grande (saímos vários rapazes e raparigas, algumas pessoas mal conheciamos - estavamos com uns 18/19 anos), e ela decide ao final da noite ficar mais tempo em Lisboa com um determinado rapazinho, sendo que depois ia dormir a minha casa. Nessa noite os meus pais não estavam em casa e dormiram lá algumas pessoas. De manhã cedo, a mãe dela telefona para o telefone fixo da minha casa (não tinhamos telemóveis e eu não sabia que era ela quando atendi)... A conversa foi surreal... ela queria que eu chamasse a minha amiga. Ora... a minha amiga ainda não tinha chegado! (deviam ser umas 9h da manhã). Eu em modo sobrevivência - se nos apanhassem com esta história nunca mais poderiamos sair juntas de certeza - inventei as desculpas de que me lembrei depois de ter dormido 2h. Acho que a desculpa principal foi que ela estava a dormir. Depois, quando a mãe me disse peremptoriamente para a ir chamar, fui em pânico ter com os meus amigos e lá me lembrei da desculpa perfeita: ela tinha ido buscar pão para o pequeno-almoço! (fosse a minha mãe telefonar e aquela desculpa nunca funcionaria... tinhamos sempre pão congelado...) Mas, por pura sorte, a mãe dela acatou a desculpa e pediu para telefonarmos de volta quando chegasse.
(Um aparte: hoje em dia só me dá vontade de rir. Se um dos meus filhos desse essa desculpa, eu não acreditava nem um segundo. E a mãe da minha amiga também não provavelmente :) deixou passar aquela de certeza.)
Noutro momento da nossa amizade fui com ela e com os avós uns dias de férias para o sul de Espanha. Nem sei como é que eles me levaram... Mas devem ter achado que era boa influência para a neta e que sempre estava mais acompanhada com alguém da sua idade. Para nosso espanto e felicidade, eles ficaram num quarto os dois e nós num outro quarto separado. Noutro(!)... piso(!) (se pusesse aqui um emoji seria o de diabinho...). Passámos as férias TODAS (ainda foram uns quantos dias) a bocejarmos assim que chegavam as 21h e a dizer que estavamos cansadas e com sono, e que iamos para cima dormir.
O que realmente faziamos era irmo-nos vestir melhor e maquilhar, para depois sairmos com um grupo de miúdos marroquinos que estavam lá de férias também. Eram rapazes e raparigas e saíam connosco todas as noites. Iamos passear pela cidade ou então iamos para uma zona de jogos do hotel. Ficavamos acordadas a noite toda e depois, de manhã, levantavamo-nos às 6h e tal porque tinhamos uma visita guiada qualquer (a viagem era um tour organizado para sócios do Inatel) O motorista do autocarro (um tipo dos seus 30 e poucos anos) e o guia só se riam quando nos viam. Adivinhem... encontravam-nos todas as noites pela cidade ou pelo hall ahahah. Nunca nos denunciaram, eram uns porreiros. Chegámos a ver o guia (um homem casado, com os seus 60 anos) a passear-se calmamente com uma mulher nova pelo braço, na cidade.
Hoje em dia se eu soubesse que os meus filhos andavam com marroquinos a passear ficava gelada. Podiam ser raptados ou algo assim. Preconceito? Talvez. Mas já não digo nada. Tudo é possível e já tive alguns sustos em saídas à noite. Mas ser mulher é bem mais vulnerável do que ser homem nesse tipo de situações.
A minha amiga vibrava com Pearl Jam e Metallica. Sempre que os oiço lembro-me dela e desta fase. Demos alcunhas parvíssimas uma à outra (que tiveram origem nos jantares em Espanha) e que ainda hoje perduram.
Mas um dia a minha amiga chegou ao limite com a sua situação familiar. Arranjou maneira de se afastar para bem longe: foi estudar para o estrangeiro. Parte da universidade dela foi feita fora. Deu-me a notícia que ia embora poucos meses antes de ir. E foi um choque. Ela era o yin e eu o yang. Estavamos juntas a toda a hora. Mas não podia fazer nada. E esperei que fossem só uns anos e que voltasse. Curiosamente ela dizia sempre "quando eu voltar, vamos fazer isto e aquilo". Nunca voltou. Nem vai voltar. Sei disso há muito tempo, deixei há muito de dizer "quando voltares". E dói um bocadinho porque nunca mais foi aquela amizade presente fisicamente, de combinarmos coisas. Estamos juntas regra geral 2 vezes por ano, no verão e no natal. Mas às vezes não conseguimos. Às vezes há tanta coisa a acontecer nessas alturas que não nos vemos. E quando vemos é uma tarde, máximo duas. Por vezes tentamos ir jantar as duas sozinhas ou ir ao café. Mas nem sempre dá. Falamos algumas vezes por ano por videochamada, mas não é a mesma coisa; enviamos fotografias volta e meia do que andamos a fazer, o que os nossos filhos andam a fazer, as novidades.
Sempre que falamos pegamos na conversa anterior e até podiam ter passado anos que a intimidade a falar é a mesma. Teremos sempre 16, 17, 19, 20 anos. A nossa linha está ali. Não mudámos o nosso ser, mas evoluímos. Muita coisa aconteceu nas nossas vidas, umas vezes mais desencontradas outras menos. Sabemos, se não tudo, muita coisa uma da outra. Ela ouviu-me em fases difíceis da minha vida, não julgou, tentou aconselhar-me o melhor que sabia. Eu espero ter feito o mesmo por ela.
A minha vida desde que se foi embora foi infinitamente mais solitária. Foi embora um pedaço de mim. Felizmente tinha outras amigas. Com duas delas em particular tinha uma relação muito próxima parecida e acabei por gravitar novamente mais para elas, se bem que a vida acontece, relações, namorados, trabalho, casamentos, abortos, filhos, etc e embora sejam amizades estreitas, já não são tão fisicamente presentes.
Mas ela, juntamente com essas outras amigas, são a família que escolhi. Mesmo com todos os seus terríveis defeitos e manias :) Digo-lhe isso muitas vezes. E digo-lhe que gosto dela. Ela nunca responde, mas eu sei que sente o mesmo. Acho que se ela me respondesse desatava a chorar. E eu não julgo, porque sei que não é fácil admitirmos que amamos alguém.