quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A Vida e a Morte

(Aviso à navegação - se se sentem num dia down, não leiam isto. Não é um post giro ou bem disposto.)


Sempre tive medo da morte. Muito medo. Desde que me lembro sempre foi um tema difícil de digerir. Esse terrível desconhecido ainda hoje me atormenta quando se me apresenta dentro das suas inúmeras formas. Lembro-me de quando era mais nova e comecei a ter noção que um dia, de facto, não estaria mais aqui. A minha vida tal como a conhecia iria desaparecer. Beliscava-me para sentir algo na pele e pensava "um dia se me beliscarem não sentirei mais nada" e começava o pânico...

A angústia em relação à morte era tão grande que comecei a bloquear isso em relação aos outros. Ou seja, sempre que alguém morria era algo distante, não era real. Os avós? Tinham simplesmente ido fazer uma longa viagem e qualquer dia tocariam à porta. Lá estariam eles, sorridentes. Nada mais se tinha passado. Uma viagem apenas.

Nunca vi os meus avós mortos. E já lá vão os quatro... Os meus queridos avós... Às vezes sinto vergonha disso. Afinal já não tenho 8 anos, tenho idade para ser crescidinha e encarar a realidade. Não tenho idade para ser hiper protegida. A morte é o que é. Não sei o porquê de nunca ter visto familiares mortos (os únicos que vi foram parentes por afinidade). Não sei se porque a morte em si é assustadora e o confronto debilita-me, se porque me custaria vê-los diferentes, se por a última visão deles ser tão fria. Só sei que tudo sempre serviu para evitar que tivesse visto o temido caixão aberto (a visão deixa-me com falta de ar). Das duas uma: ou bloquearia e digeria as coisas como se tivesse numa realidade paralela (como aconteceu com um tio por afinidade, uma pessoa super querida que deixa saudades), ou ia-me abaixo. E tenho tanto, tanto medo de me ir abaixo, de ficar vulnerável.
Assim, prefiro fingir que não é comigo.

Lembro-me de estar no início dos meus anos teenagers e fazer um exercício curioso. Estava na cama e comecei a fingir que estava morta, dentro de um caixão. Ficaria ali para sempre, debaixo da terra, inerte. O mundo lá fora, numa máquina de movimento que nunca acaba, e eu ali. Lembro-me de imaginar quem ficaria cá fora a pensar e a chorar por mim. Lembro-me de ficar tão concentrada nesses pensamentos e de tentar simular o estado da morte, que ao "voltar a mim" dava comigo gelada e paralisada. A chorar de medo. E os meus medos um dia tornar-se-iam realidade. Era pavoroso... Quer eu quisesse quer não, eu iria mesmo morrer. Era difícil de aceitar. E quase desejei não ter nascido para não ter de morrer.

Ao "voltar a mim" pensava "não estou morta, estou aqui na minha cama quente, no conforto da minha casa. Pára com isso, não penses mais nisto." Mas o meu corpo ainda estava gelado e em pânico. Prometi a mim mesma que não me podia deixar cair em tal sentimento. Tinha de me proteger e o meio de atingir isso seria não pensar mais no assunto. Afinal o que me adiantava? Só sofreria e não queria mais isso. Talvez por isso, até hoje, são raras as vezes que falo sobre a morte.

Curiosamente nunca pensei muito na morte dos meus pais. É algo tão louco e inconcebível que nem me permitia ter medo. Não. Os meus pais viverão para sempre. Essa rede emocional (e física) estará lá para sempre. Não me permito sequer pensar de outro modo.
Objetivamente sei que isso não será assim, mas recuso-me a sofrer e ter medo por antecipação. Prefiro mentir a mim própria. É mais fácil. Mesmo nos problemas de saúde penso: tudo se resolverá.

Curiosamente, egoísticamente, a morte sempre girou em torno de mim. Os outros nunca morriam realmente, iam viajar. Mas eu não iria viajar, eu iria parar, morrer. EU. MOI. JE. ME. E isso não podia ser. Tenho tanto para viver. Tanto para fazer. Não posso morrer. Já sei. Me, me, me. Mas essa é a realidade dos meus medos.

Depois tive o M.

E a partir daí foi ainda pior. Não podia, não posso morrer. Para o proteger, para o criar, educar, amar, dar carinho, cuidar, prepara-lo o mais que puder. Todos sabem que os filhos precisam dos pais. Precisam da mãe. E agora que tenho um filho sei o quanto eles precisam do nosso amor e atenção. São tão indefesos, tão inocentes. Precisam tanto de nós.

Ao mesmo tempo, começou o pavor de ser ao contrário. De sermos nós a perder os filhos. De toda a nossa nova existência, desde que os temos, se esfumar de repente na perda da existência deles. Vemos tantas notícias tristes... Mortes prematuras por doenças fatais, acidentes. O que for. Olhamos a perda dos filhos dos outros e quase perdemos a esperança de um mundo justo, e, no fundo, respiramos de alívio por termos sido poupados a tal provação, à tal coisa inimaginável. A tal coisa que não pode e não deve acontecer. Os filhos devem sempre, sempre!, ultrapassar-nos, devemos morrer antes dos nossos filhos. Só assim o mundo tem alguma justiça.

Fim de semana passado:

Estou sentada na sala da minha casa. A minha mãe está cá e, a certa altura, recebe um telefonema inesperado de um antigo aluno. Lamenta a notícia mas informa-a de que um colega e antigo aluno dela (agora na faculdade) morreu. Estava bem de saúde aparentemente. Não tinha "vícios" que pudessem ter conduzido a um desfecho fatal numa manhã fria de dia de semana. É uma morte quase inexplicável. Os pais tinham por hábito sair mais cedo para trabalhar enquanto ele dormia mais um bocado antes de ir para a faculdade. Como sabiam da preguiça normal do filho, tinham por hábito telefonar-lhe todos os dias de manhã para o acordar. Nesse dia específico o filho não atendeu os telefonemas. Nesse dia o pai decidiu, por via das dúvidas, ir a casa ver o que se passava. O carro do filho ainda estava cá fora. "O sacana ainda está a dormir, vai ouvir!" Nesse dia, o pai entrou no quarto onde o filho, na cama, ainda estava roxo (talvez por estar a sufocar com algo) e a dar os últimos suspiros. Tudo fez para reanimar o rapaz. Não conseguiu.

Tento colocar-me no lugar do filho. Nem quero pensar... Não imagino. Não quero imaginar. É horrível demais. Mas não consigo evitar pensar sobretudo no pai. Não consigo conceber o que será acontecer-nos algo assim. Ver o nosso filho a morrer. Como se vive depois disso? como? como vivem os pais que perderam os filhos? é possível viver?

Já se passaram dias, e todos os dias esta história (ainda sem desfecho, malditas autópsias) continua a assombrar-me. Especialmente à noite.


À noite:

Vou deitar o fofinho do M., este ser fabuloso que faz o meu coração derreter. As nossas rotinas desenrolam-se como habitualmente. Mas desta vez reivindico o colo que ele volta e meia já dispensa (tem dias). Quero dar-te colo. Beijar-te. Abraçar-te. Muito. Quero aproveitar o ter-te aqui comigo agora. Quero sentir o teu corpinho quente e pequeno que se aninha nos meus braços. Faço-te muitas festas e agarro-te com força. Quero sentir-me meu amor. És definitivamente a coisa mais preciosa que tenho e quero memorizar como é abraçar-te. O toque, o cheiro, a tua vozinha a pedir coisas, a contar coisas. Quero gravar no meu coração estes momentos de intimidade (um dos) que são tão especiais para mim.
Sei que vai ser difícil lembrares-te destes momentos quanto fores adulto, mas espero ao menos que eles te sirvam para reforçar a confiança em ti próprio, que sintas sempre o quanto amado és.

Abraço-te com força e peço a Deus, aos Deuses, ao Destino, às forças do Universo, ao que seja, para que me assegurem que tenha muito tempo, muitos anos contigo, mas que me deixem morrer antes de ti. É assim que as coisas devem ser.

1 comentário:

  1. Deveríamos viver para sempre... Mas já que não é possível, vamos absorver bem todos os pequenos e grandes momentos, para não pensarmos depois que a vida nos passou ao lado. Ou pelo menos fazer por isso.
    Bjo

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